(foto de filipe's glance) |
"Amanhã, meu amor, já não terás de ouvir-me contar
quantos dias não passaram por falta dos teus beijos;
nem quantas noites estranhei a cama onde sempre dormi
e acordei no escuro gritando pelo teu corpo, e gemi
depois baixinho, como um cão perdido, até um feixe
de luz decepar o meu quarto e o eco da cidade me
devolver o rumor da vida. Os meus lábios estarão
então tão frios para palavras como são frios os ventos
que se encostam às esquinas; e frias também as águas
que tiritam nos lagos onde repousa o gelo das manhãs.
Amanhã, meu amor, já não terás de ver nos meus olhos
o reflexo das velas cansadas das viagens; nem das aves
que sobrevoaram o cais, mas por descrerem do verão,
desistiram de perseguir os barcos que se foram a um país
de sol. E não terás também de ver as minhas lágrimas, porque
a mão de um anjo virá cerrar-me as pálpebras para esconder
deste mundo que a morte nunca chega para quem ama.
Amanhã, meu amor, já não terás de desviar-te dos gestos
que, sem querer, escorregavam dos meus dedos; nem
de pressentir os espasmos de desejo na carne que as tuas
mãos desabitaram; e não terás de saber que, pela última vez,
me perfumei para ti - porque haverá em todo o caso
demasiadas flores, e o meu corpo estará então inerte
como as sombras que pernoitam nos veios das montanhas
ou os seixos que nasceram nas praias que o mar nunca tocou.
Amanhã, meu amor, já não terás de ler os avisos que soprei
tantas vezes na queimadura de uma página; nem as feridas
abertas nesses riscos que eu fazia nas toalhas de papel quando
o teu silencio era mesmo um parágrafo e o meu pranto
desaguava num fio de tinta que escorria para dentro da tua mão.
As canetas terão então secado; e os meus versos serão velhos
como os livros mutilados pelas traças, velhos como a vida,
e vãos como os nomes acumulados inutilmente na memória."
(Maria do Rosário Pedreira)
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