23 maio 2012

"A Divina Comédia..."




 " (...) Quando Dante tinha nove anos de idade viu um dia na rua uma rapariguinha, tão jovem como ele, e que se chamava Beatriz. Beatriz era a criança mais bela de Florença: os seus olhos eram verdes e brilhantes, o seu pescoço alto e fino, os seus cabelos leves e loiros, trémulos sob a brisa. E caminhava com ar tão puro, tão grave e tão honesto que lembrava as madonas que estão pintadas nas nossas igrejas. Dante amou-a desde essa idade e desde esse primeiro encontro. Mas passados anos, em plena juventude, Beatriz morreu. Essa morte foi o tormento de Dante. Então, para esquecer o seu desgosto, começou uma vida de loucuras e erros. Até que um dia, numa Sexta-Feira Santa, a 8 de Abril do ano de 1300, se encontrou perdido no meio de uma floresta escura e selvagem. Aí lhe apareceram um leopardo, um leão e uma loba. Dante olhou então à roda de si e viu passar uma sombra. Ele chamou-a em seu auxílio e a sombra disse-lhe:
 - "Sou a sombra de Virgílio, o poeta morto há mais de mil anos, e venho da parte de Beatriz para te guiar até ao lugar onde ela te espera."
 Dante seguiu Virgílio. Primeiro passaram sob a porta do Inferno onde está escrito: "Vós que entrais deixai toda a esperança".
 Depois atravessaram os nove círculos onde estão os condenados. Viram aqueles que estão cobertos por chuvas e lama, viram os que são eternamente arrastados em tempestades e vento, viram os que moram dentro do fogo e viram os traidores presos em lagos de gelo. Por toda a parte se erguiam monstros e demónios, e Dante agarrava-se a Virgílio tremendo de terror. E por toda a parte reinava a escuridão como numa mina. Pois era ali um reino subterrâneo, sem sol, sem lua e sem estrelas, iluminado apenas pelas chamas infernais.

Depois de terem percorrido todos os abismos do Inferno voltaram à luz do sol e chegaram ao Purgatório, que é um monte num meio duma ilha subindo para o céu. Aí Dante e Vergílio viram as almas que através de penitências e preces vão a caminho do Paraíso. Neste lugar já não se viam demónios, mas em cada nova estrada surgiam anjos brilhantes como estrelas. 
Até que chagaram ao Paraíso Terrestre, que fica no cimo do monte do Purgatório. Aí, entre relvas, bosques, fontes e flores, Dante tornou a ver Beatriz. Trazia na cabeça um véu branco cingido de oliveira: os seus ombros estavam cobertos por um manto verde e o seu vestido era da cor da chama viva. Vinha num carro puxado por um estranho animal metade leão e metade pássaro.

 - Dante – disse ela -, mandei-te chamar para te curar dos teus erros e pecados. Já viste o que sofrem as almas do Inferno e já viste as grandes penitências daqueles que estão no Purgatório. Agora vou-te levar comigo ao Céu para que vejas a felicidade e a alegria dos bons e dos justos.
Guiado por Beatriz, o poeta atravessou os nove círculos do Céu. Caminharam entre estrelas e planetas rodeados de anjos e de cânticos. E viram as almas dos justos cheias de glória e de alegria. Quando chegaram ao décimo Céu Beatriz despediu-se do seu amigo e disse-lhe:
- Volta à terra e escreve num livro todas estas coisas que viste. Assim ensinarás os homens a detestarem o mal e a desejarem o bem.

Dante voltou a este mundo e cumpriu a vontade de Beatriz. Escreveu um longo e maravilhoso poema chamado "A Divina Comédia", no qual contou a sua viagem através do reino dos mortos.
A notícia desta viagem causou grande espanto em Florença. Quando Dante passava na rua todos se viravam para o ver, pois diziam que ele ainda tinha a barba "chamuscada pelo fogo do Inferno que tinha atravessado".
                
- É verdadeiramente a história mais extraordinária que ouvi em toda a minha vida – disse o Cavaleiro -. Compreendo que Dante tenha sido recebido com grande espanto e curiosidade. E, mais ainda, julgo que daí em diante deve ter sido um homem de grande autoridade respeitado e escutado por todos os seus concidadãos.
 - De facto – disse Filippo – devia ter sido assim, mas não foi assim que aconteceu. Quando, depois de ter atravessado os três países da morte, o poeta voltou a Florença e encontrou a cidade apaixonada por grandes lutas políticas. Havia nesse tempo dois partidos que dividiam a Itália: o partido dos Guelfos e o partido dos Gibelinos. Dante era gibelino, e aconteceu que nesse ano de 1300 ele foi eleito para o governo da cidade. Mas tempos depois o seu partido foi vencido e o poeta exilado. Mais tarde os seus inimigos também o condenaram a ser queimado vivo. Felizmente nessa altura ele já estava longe de Florença, e assim escapou à morte e ao suplício. Mas nunca mais pode voltar à sua cidade natal e viveu até ao fim da sua vida vagueando como refugiado político pelas outras cidades italianas. E foi neste exílio, separado de Beatriz pela morte e de Florença pela injustiça dos homens, que Dante escreveu a "Divina Comédia"  (...)"

(Sophia de Mello Breyner Andresen in O cavaleiro da Dinamarca)

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